Os Beatles & a Maconha



Por Leko Soares

Era mais um dia de turnê em 28 de agosto de 1964, durante a invasão britânica dos Beatles nos Estados Unidos.  Eis que chega ao Hotel Delmonico, Bob Dylan, então, já ícone consolidado da música Folk norte-americana e levado até o encontro dos caras de Liverpool pelo amigo em comum Al Arononvitz. Nesse dia histórico, além do primeiro encontro de dois ícones incontestes da música do século XX e que se influenciariam mutuamente a partir dali, os Beatles também seriam apresentados de maneira ‘séria’ à erva que também seria um elemento de importante influência na vida e na música da banda dali em diante.  

Apesar do consenso em relação à importância desse encontro com Dylan para desencadear o uso de maconha por parte dos Beatles, a pré disposição pro uso da ‘ganga’ já estava lá desde o início. Consta que Paul e John fumavam até chá, que colocavam dentro de um cachimbo, enquanto compunham as primeiras músicas.

 

Bob Dylan e John Lennon na década de 1960

Entretanto, o que pouco se diz é que, segundo fontes de amigos próximos e dos próprios integrantes da banda, é certo afirmar que alguns deles já haviam tido contato com a erva em anos anteriores.

Segundo George Harrison, eles receberam a primeira oferta de maconha em 1960, após sua primeira viagem a Hamburgo: “Primeiro, compramos maconha de um baterista mais velho de outro grupo em Liverpool. Na verdade, não tentamos até depois de irmos para Hamburgo. Lembro que fumamos na sala da banda em um show em Southport e todos nós aprendemos a fazer o Twist naquela noite, que era popular na época. Estávamos todos vendo se conseguiríamos. Todo mundo dizia: 'Essa coisa não está fazendo nada.' Era como aquela velha piada em que está acontecendo uma festa e dois hippies estão flutuando no teto, e um diz para o outro: 'Essa coisa não funciona, cara.”

Bob Wooler que era DJ no Cavern Club no período inicial da ascensão dos Beatles relata a dificuldade do acesso às drogas na época: “Não tínhamos um cenário forte de drogas de forma alguma. Originalmente, eram apenas ‘corações roxos’, anfetaminas, speed ou como você quiser chamar”. Mas ele confirma o contato precoce da banda com a erva: “Quando os Beatles foram para o sul, eles às vezes trouxeram cannabis e gradualmente a cena das drogas se desenvolveu em Liverpool”.

 


Conta a história que antes da célebre e malsucedida audição dos Beatles para a Decca em 1º de janeiro de 1962 , em um momento durante a viagem de Liverpool a Londres, o motorista Neil Aspinall se perdeu e um par de homens decadentes tentou entrar na van do grupo como um refúgio seguro para fumar maconha. 

Mas...voltemos ao Hotel Delmonico, naquele 28 de agosto de 1964. Aquele encontro chapado teria várias testemunhas que relataram suas experiências extrassensoriais naquele dia. Uma das mais divertidas é descrita por Peter Brown no seu livro “The Love You Make”


 “Brian e os Beatles se entreolharam apreensivos.

-Nós nunca fumamos maconha antes, Brian finalmente admitiu. 

Dylan olhou incrédulo de rosto em rosto. 

-Mas e quanto à sua música? ele perguntou. Aquela que fala sobre ficar chapado?

Os Beatles ficaram estupefatos. 

- Qual música? John conseguiu perguntar.
Dylan disse:

-Você sabe ... e então cantou, ‘e quando toco em você fico chapado, fico chapado ...’(get high)

John enrubesceu de vergonha. 

- Essas não são as palavras, ele admitiu. As palavras são: 'Não consigo esconder, não consigo esconder, não consigo esconder (I can’t hide) ...'

 

Paul e os 'Sete Níveis'

Paul McCartney , por sua vez, ficou impressionado com a profundidade da ocasião, dizendo a quem quisesse ouvir que ele estava “pensando pela primeira vez, realmente pensando”. Enquanto ele pirava, Mal Evans o seguia com um caderno, anotando tudo o que ele dissesse:

“Lembro-me de perguntar a Mal, nosso tour manager, pelo que pareceram anos e anos: 'Você tem um lápis?' Mas é claro que todo mundo estava tão chapado que não conseguia tirar um lápis, muito menos uma combinação de lápis e papel.

Eu estive passando por essa coisa de níveis, durante a noite. E em cada nível eu encontraria todas essas pessoas novamente. 'Hahaha! É você!' E então eu me metamorfoseei para outro nível. De qualquer forma, Mal me deu um pequeno pedaço de papel pela manhã e escreveu nele:

'Existem sete níveis!'

Na verdade, não foi ruim. Nada mal para um amador. E nós nos mijamos de tanto rir. Quero dizer, 'Que porra é essa? Que porra são os sete níveis? ' Mas, olhando para trás, é na verdade um comentário bastante sucinto; está ligado a muitas das principais religiões, mas eu não sabia disso na época.”

 

Paul e Mal Evans: "Existem sete níveis"

Falando em McCartney, é notório que o ex-beatle é o maconheiro por excelência dos Beatles, tendo inclusive já escrito uma ode à erva em forma de canção de amor. Trata-se de “Got you get you into my Life”, faixa icônica do álbum “Revolver” de 1966 e que é executada por Paul nas suas apresentações até os dias atuais. Sobre isso, o próprio compositor confirma: “essa eu escrevi quando fui apresentado à maconha (...) não é sobre uma pessoa, é sobre maconha (...) uma ode à maconha, assim como alguém poderia escrever uma ode ao chocolate ou a um bom vinho de Bordeaux”.

De acordo com o biógrafo de John e Paul, Philip Norman, “desde que haviam sido iniciados por Bob Dylan, todos os quatro se tornaram consumidores regulares de maconha, ávidos por qualquer oportunidade de buscar um refúgio e circular na roda os cigarros fininhos e frouxamente embrulhados cujos poderes de provocar risadas se haviam demonstrado tão instantâneo e infalíveis. Consta que eles carregavam consigo generosos suprimentos da droga onde quer que fossem. Antes de cada viagem, os dois roadies, Neil e Mal, esvaziavam um pacote com duzentos cigarros comuns e enchiam cada maço com baseados pré-enrolados, lacrando de novo com ferro de passar quente o invólucro de papel celofane para que nenhum funcionário da alfândega suspeitasse que já tinha sido aberto”.

Paul e John, durante as gravações do Revolver (1966)

A intimidade da banda (e parte da equipe) com a droga os levou inclusive a participarem de uma campanha pró-legalização digna de orgulhar um Planet Hemp da vida. Em 24 de julho de 1967, os Beatles e Brian Epstein adicionaram seus nomes a um anúncio que apareceu no jornal Times pedindo a legalização da cannabis. Patrocinado por um grupo chamado Soma, o anúncio também exigia a libertação de todas as pessoas presas por posse de cannabis e mais pesquisas sobre os usos médicos da droga.

O manifesto em defesa da legalização da Maconha,
assinado pelos Beatles e Brian Epstein

Em 1965, eles gravariam o primeiro álbum no qual eles eram "totalmente maconheiros", segundo George Harrison. E são ínumeras as ocasiões relatadas durante as filmagens do filme Help! que definitivamente, comprovam essa afirmação. Em uma delas, Ringo afirmou durante o documentário Anthology: "Nós fumamos muita maconha enquanto estávamos fazendo o filme. Isso ajudou a tornar as filmagens muito divertidas. Se você olhar para as fotos, vai ver muitas fotos de olhos vermelhos - eram vermelhos da droga que estávamos fumando"

Em uma entrevista de Lennon a David Sheff, ele declarou: "Os Beatles foram além da compreensão. Estávamos fumando maconha no café da manhã. Estávamos consumindo maconha e ninguém conseguia se comunicar conosco, porque éramos apenas olhos vidrados, rindo o tempo todo."

O uso durante as filmagens foi tanto que, segundo Paul, em determinado momento a diversão dos Beatles começou a atrapalhar: "Tudo o que tínhamos que fazer era virar e parecer espantados. Mas toda vez que nos virávamos para a câmera, havia lágrimas escorrendo nos nossos rostos. Não há problema em rir em qualquer outro lugar, exceto nos filmes, porque os técnicos ficam chateados com você."

Quanto a essa situação, Ringo complementa: "Dick Lester (o diretor de Help!) sabia que muito pouco seria feito depois do almoço. No período da tarde, raramente chegávamos à primeira linha do roteiro. Estávamos tão chapados que ninguém podia fazer nada."

Os quatro durante as gravações de Help!

Lester teve que se virar e acabou se utilizando de um artifício pouco usual: repassar com os Beatles linha por linha do roteiro, e então, filmar suas atuações antes que tivessem tempo de esquecer. Isso exigia edições rápidas e claro, prejudicou devido à falta de interação e espontaneidade que os quatro haviam demonstrado durante as gravações do primeiro longa, “A Hard Day's Night”. 

Apesar da inspiração direta em músicas como “Got you get you into my Life” e indireta, se analisarmos a mudança no comportamento, na abordagem e estrutura das composições a partir do Rubber Soul (conhecido por muitos como o “disco da maconha”), Paul minimiza o uso da droga como determinante nas composições dos Beatles: "Praticamente todo mundo estava usando alguma coisa. Conosco, não foi diferente. Mas nós dávamos importância demais às nossas composições para estragar tudo ficando loucos o tempo todo".

Uma ocasião que contraria um pouco essa afirmação ocorreu durante as sessões de gravação de “And your Bird can Sing”, faixa também presente no “Revolver”. No take 2 presente no Anthology 2 John e Paul literalmente iniciam uma crise de risos durante a gravação da faixa. Se estavam chapados? Ouça a gravação e tire suas conclusões.

And Your Bird Can Sing (Take 2) Anthology

Falando em risos, a senha de John para convidar um dos outros para fumar costumava ser “Vamos dar umas risadas”

Nos anos posteriores ao início da paixão pela erva, não são raras as ocasiões em que são relatadas situações em que os quatro estavam “dando umas risadas”. Em uma delas, quando os Beatles estavam circulando por Kensington no Rolls Royce de John, um carro de patrulha parou o Rolls por uma banal transgressão de trânsito. “Quando John desceu o vidro da janela traseira para ver o que estava acontecendo, toda aquela fumaça da maconha saiu em rolos do carro”, lembra Les Anthony, o chofer. “Mas os policiais pareciam não ter nenhuma ideia do que era aquilo. Quando voltava para casa depois de um dia rodando com John, minhas roupas cheiravam a erva”.

Entretanto, nem sempre os maconheiros conseguiram escapar da prisão:

Em 18 de outubro de 1968, John e Yoko foram presos por posse de maconha enquanto permaneciam no apartamento de Ringo Starr em Londres. Ele se declarou culpado em 28 de novembro, absolvendo Ono, que estava grávida na época.

No ano seguinte, em 12 de março de 1969 , George e Pattie Harrison foram igualmente presos por porte. Como Lennon e Ono, os Harrisons sustentaram que as drogas foram plantadas pelo esquadrão antidrogas de Londres, liderado pelo sargento-detetive Norman Pilcher, um notoriamente fanático antidrogas.

John e Yoko sendo presos por posse de maconha em 1968

Já Paul, em históricos de prisão pelo porte da erva, supera de longe, todos eles - Em 1972, ele foi preso na Suécia. Em 1980, ele foi deportado do Japão após policiais encontrarem maconha em sua bagagem. Em 1984, ele foi detido em Barbados quando estava comprando a droga ao lado de Linda McCartney.

O pior desses episódios foi o da prisão no Japão, que influenciaria inclusive no fim precoce do Wings. Após encontrarem 225 gramas de maconha em sua bagagem, Paul foi preso por dez dias em 1980 durante uma turnê pelo país. Ele relata que estava em Nova York com "... um fumo muito bom. Estávamos prestes a ir para o Japão e eu não sabia se conseguiria fumar alguma coisa por lá. O negócio era bom demais para jogar na privada, então eu resolvi levar comigo".

Paul e Linda nos anos 1970

O “divórcio”

Aos 69 anos, o agora ex-maconheiro Paul relata que largou a droga  pelo senso de responsabilidade com sua filha caçula Beatrice: “Eu fumei bastante e agora já chega. Eu já fumei minha cota. Quando você tem uma pessoa para cuidar, em algum momento, se você tiver sorte, o senso de responsabilidade aflora. Basta! Você não acha que é necessário continuar”.

Embora o tema pareça espinhoso para admiradores mais conservadores da banda (pude comprovar dessa afirmação pela perda de seguidores no instagram do @sgtfolker ao abordar a possibilidade de escrever sobre o tema), é inegável a relação próxima dos Beatles com a maconha a partir de 1964 e além. É sabido também que, infelizmente, alguns dos integrantes não parariam por aí e teriam sérios problemas com drogas mais pesadas posteriormente (Lennon e sua Cold Turkey se auto-explicam). Mas, apesar dos já conhecidos problemas e malefícios causados pelas drogas, é seguro afirmar que, Sim! a influência da maconha no funcionamento das engrenagens da máquina criativa “The Beatles”, adicionada, é claro, a outros fatores e influências externas, trouxe sim uma nova abordagem para a musicalidade e inspiração que a banda apresentaria principalmente na fase que se inicia em Rubber Soul e que culminaria na banda amadurecida, muitas vezes experimental e avant-gardè da segunda fase que seria primordial para fixar os Beatles como uma das maiores (para muitos de nós, a maior) banda de todos os tempos!

What’s the new Mary Jane?

Você pode acompanhar mais sobre nossa discussão do tema "Os Beatles & a Maconha" na Live realizada pelo beatlelogias em parceria com o Sgt Folker, no link abaixo:




 

 

 

 

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